Visitei uma única vez a casa onde hoje, em Taquari, está instalado o Museu Costa e Silva. Casa onde ele nasceu, e onde também nasceu meu avô, de quem herdei o nome, que era seu tio. Para o menino de 10 anos que eu era, foi um dia inesquecível. Levado por meu pai, fui tirar uma foto ao lado do primo ilustre, Presidente da República, que ali instalara simbolicamente o governo do país, homenageando sua terra natal.
Foi um dia de muita festa e muito orgulho para Taquari. Segundo afirmavam à época todos os grandes jornais e todas as grandes emissoras de rádio e TV (ou seja, toda a nossa grande mídia), Costa e Silva era o chefe de um regime que se instalara para evitar a implantação de uma ditadura totalitária no Brasil e para garantir a sobrevivência da democracia. Os taquarienses tinham, assim, muito do que se orgulhar e muito a festejar.
Goebbels, o propagandista de Hitler, dizia que uma mentira mil vezes repetida se transforma em verdade. Mercê da nossa imprensa "isenta", e também, mais tarde, da censura implantada pela ditadura militar, para a grande maioria do povo brasileiro essa imensa mentira era uma verdade óbvia. E por isso seguiu a pequena cidade do interior do Rio Grande a cultivar o seu orgulho pelo filho ilustre, chegando a homenageá-lo, em 1976, com um busto fincado em praça pública.
Assim como as ofensas, as homenagens dizem mais de quem as faz do que de quem as recebe. Contêm em si a defesa e o desejo de preservação dos valores que o homenageado representa no imaginário dos que homenageiam. Têm uma conotação eminentemente simbólica.
E daí caber hoje a indagação: desfeita a mentira e recuperada a verdade, quais valores a figura de Costa e Silva passou a representar? Qual o seu papel diante da História? Infelizmente, nada que possa ser motivo de orgulho. Ou nada a ser transmitido como exemplo para as futuras gerações. Pelo menos na esfera pública.
E é isso que está dizendo o atual prefeito de Taquari, Maneco (PT), com a decisão, carregada de simbolismo, de transferir o busto de Costa e Silva de uma praça pública para um museu, revogando a homenagem mas preservando a história. Ou seja, que Taquari não pode continuar homenageando alguém cujo maior feito foi o de atentar contra a democracia. Aliás, para deixar mais claro ainda o simbolismo do seu ato, Maneco está encaminhando à Câmara de Vereadores um projeto de lei propondo que o local onde estava o busto do ditador passe a se denominar "Praça da Democracia".
Não sei se o prefeito esperava a reação indignada de inúmeros taquarienses, manifestada nas redes sociais. Mas ela é compreensível. O sentimento de orgulho pelo filho ilustre, como já disse, foi cultivado por gerações na cidade. E o orgulho, como sentimento que é, não tem parentesco com a razão, o que comprovam as alegações dos indignados.
Uma delas é a de que outras figuras históricas que não tinham apreço pela democracia continuam com suas homenagens espalhadas por aí. Correto, mas em termos. Cada figura histórica deve ser circunstanciada a sua época, ou seja, deve ser julgada segundo os valores do seu tempo. Alexandre, César e Napoleão, por exemplo, eram grandes guerreiros, em épocas em que a guerra era o esporte favorito da humanidade, e democracia era uma coisa incogitável. Aliás, somente após a II Guerra Mundial é que a democracia passou a ser defendida como um valor universal. Daí entendermos a destruição das estátuas de Franco, na Espanha, e de Stálin, na Rússia, entre outros menos votados, após a queda dos respectivos regimes. E também a permanência das homenagens a Getúlio, que soube acompanhar a evolução que houve em seu tempo, como bem mostra a biografia escrita por Lira Neto.
Há também Cuba. Sim, por incrível que pareça Cuba foi trazida para o debate. Isto por conta da simpatia de alguns militantes do PT, partido do prefeito, pelo regime cubano, que inegavelmente praticou e vem praticando violações aos direitos humanos. Não conheço a posição pessoal de Maneco sobre o assunto. Mas não tenho notícia de que o PT, institucionalmente, tenha defendido tais violações, que são indefensáveis, como também o são aquelas cometidas pelo seu vizinho Estados Unidos na prisão de Guantanamo. Coincidência ou não, ambos os países tentam justificar o injustificável alegando combate ao terrorismo. (Para quem não sabe, Cuba foi alvo de ataques terroristas por parte de organizações de exilados que vivem nos Estados Unidos. Bombas foram colocadas em hotéis, matando inclusive um turista italiano, na tentativa de prejudicar o turismo na ilha, fonte de receita importante diante do bloqueio econômico que parece estar a findar.) Mas não se combate o terror com terror, e sim com civilização. O que vale para Cuba, Estados Unidos, e também para o Brasil.
Outra queixa é a de que Maneco teria sido autoritário, tendo decidido sem consultar a população. E realmente não houve tal consulta. Assim como não houve quando da homenagem. Nos dois casos o que houve foi uma decisão do Poder Público sobre a ocupação do espaço público, na esfera das suas atribuições legais. Com a diferença fundamental de que os contrários à homenagem, na época em que ela foi feita, não tinham muita liberdade para manifestar sua inconformidade. Não fazia bem à saúde, como se sabe. Mas felizmente os indignados de hoje estão bem à vontade, podendo manifestar livremente sua opinião sem receio algum. Tomara tenham consciência do valor intrínseco dessa possibilidade.
Comecei este texto pelo contato pessoal que tive, por circunstâncias familiares, e ainda menino, com o ditador. E o fiz de propósito, para situar o leitor no contexto de quem escreve. Nasci e cresci em Taquari. Confesso que chamar "o Arthur", como ele era tratado em família, de ditador, é um pouco doloroso, considerando-se a carga afetiva que carregamos vida afora em relação aos que nos são próximos. Mas é a palavra que melhor define o papel que ele decidiu assumir perante a História. Sei que é doloroso também para o povo de Taquari, e especialmente para os meus familiares, ter que admitir essa verdade quanto ao personagem cuja memória foi tão cultuada durante tanto tempo. Mas o processo civilizatorio, como o crescimento individual, exige às vezes algumas perdas e sacrifícios. E essa dor, que ao fim e ao cabo é a dor do orgulho ferido, é milhões de vezes preferível à infinita dor dos muitos brasileiros que ainda hoje são obrigados a conviver com homenagens públicas aos responsáveis pela tortura, morte e desaparecimento dos seus entes queridos.
O jovem Maneco nos fez crescer um pouco.
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